Quando a existência vira alvo
Muito além das competições, a presença de pessoas trans no surfe escancara preconceitos, silenciamentos e uma urgência: falar sobre o direito de existir
Uma noite, de forma despretensiosa, uma amiga e surfista por quem tenho profunda admiração me perguntou o que eu pensava sobre a presença de pessoas transgênero no surfe de competição. Lembro do desconforto que senti — não só pela dureza do tema, mas pela dificuldade em encontrar argumentos que me apoiassem no debate.
“Lutamos tanto para conseguir nosso espaço... não parece justo agora ter que competir com homens que decidiram ser mulheres”, ouvi de outra pessoa da roda.
De fato, a luta das surfistas é árdua, e a questão biológica é um dos pilares que sustentam objeções à participação de trans em esportes de competição, não só no surfe. Entretanto, discordo da ideia de que, “do dia para a noite”, decide-se por uma transição.
Sei que nada é tão simples quanto parece, mas pra mim é fácil reconhecer que cada ser é, ou deveria ser, livre pra fazer suas escolhas determinadas pela existência. Não se trata de modismo.
Tentei me esquivar da conversa, voltar para as amenidades, terminar minha cerveja.
Até que encontrei uma saída e fui honesta: não me sentia capaz de debater aquele assunto, já que me falta embasamento técnico e científico para argumentar.
Finalizei sendo ainda mais sincera: nessa discussão, o que está em jogo é a vida.
Antes de discutir se trans devem ou não competir no surfe, deveríamos discutir por que a existência dessas pessoas incomoda tanto, a ponto de o Brasil ser, há anos, o país que mais mata pessoas trans no mundo.
Quando a ISA anunciou suas novas políticas, permitindo a participação de trans em competições de surfe, dentro de padrões hormonais válidos, houve uma comoção. Contudo, não parece haver choque algum ao saber sobre os terríveis índices de violência contra essas pessoas. Isso, sim, é chocante.
Para além das competições, a presença de surfistas trans no mar é extremamente escassa. Ao longo da minha trajetória como jornalista de surfe, conheci apenas uma: Camila Matos. Filha de militar, Camila teve a sorte de, mesmo com uma formação rígida em casa, ser acolhida. Na maioria dos casos, porém, a família é o primeiro lugar onde essas pessoas sofrem violência. Na época, ofereci a história de Camila para a Trip, mas a editora negou sob a justificativa de que viriam muitos haters. A história nunca foi contada.
Na semana passada, recebi uma mensagem de um colega. Ele dizia que havia uma surfista trans, a Alice, e que gostaria de me apresentar a história. “Alice”, um curta documental dirigido por Gabriel Novis, conta a trajetória dela, uma artista que retornou ao surfe para resgatar a relação com o pai. Selecionado para o Festival Hot Docs, que acontece em Toronto, Canadá, entre os dias 24 de abril e 4 de maio; um importante festival, já que é um dos caminhos para indicações ao Oscar na categoria.
Gostei da ideia de falar sobre o filme, mas minha preocupação foi com a onda de ódio que podia abater Alice. Lembrei da editora.
Alice disse que estava preparada. Admiro sua coragem e a determinação de Gabriel Novis, que decide mexer num vespeiro. Porque o surfe é muito menos libertário do que se vende. Gabriel joga luz sobre um tema profundo e necessário, pois não se trata de competição ou nível de testosterona, mas de um ambiente que recusa mulheres, homossexuais e trans.
Abaixo, compartilho com você a fala de Alice e de Gabriel.
E, de antemão, peço desculpas pelo atraso. Esse texto deveria ter sido enviado a você ontem…
“Eu acho que no surfe a intenção é muito menos o surfe e muito mais a violência. O surfe – e os esportes em geral – tem para muitos um papel que é de dominância. Eles querem impor esse lugar, então quando eles veem pessoas que consideram inferiores – mulheres, trans, LGBTQIA+ em geral – eles se sentem ameaçados, é uma fobia mesmo, e partem para a violência. Para eles, não é sobre o surfe, é mais um lugar para representar e reforçar essa dominância.”
ALICE, protagonista do filme, multiartista, tras e surfista
“O surfe foi inventado como uma forma de escape, uma forma das pessoas se expressarem. Nasceu como rebeldia, quase como o movimento hippie ou punk, que iam na contramão do que sociedade impunha. Tinha gente lá atrás que achava que era uma prática para “vagabundo”.
Conforme foi se popularizando – o que é muito legal, pois traz mais investimentos e atenção – o surfe transicionou de um estilo de vida para um esporte. Era só um estilo de vida, hoje pode ser os dois, mas muitas pessoas veem apenas como um esporte. E como em todo esporte de alto rendimento, existe preconceitos, opiniões pré-formadas. Então aquele surfe que era livre e orgânico virou um espaço de preconceitos.
Muitos dos meus amigos não são bem aceitos dentro da comunidade do surfe. Eu transito por muitas “galeras”, muitas tribos diferentes e pessoas de todos os cantos do mundo e senti que eu não conseguia cruzar comunidades, trazer pessoas de outras comunidades para se conectar com a galera do surfe. Então, quando eu reencontrei a Alice e a gente conversou, o desconforto dela no surfe me atingiu muito forte.
Esse filme é para abrir os olhos da comunidade do surfe, minha “turma”, da qual eu quis me distanciar um pouco quando percebi que o surfe não era aquilo que eu imaginava que era, um lugar livre, esse lugar de encontros. É um wake up call para a comunidade. O surfe é para todo mundo e não deve ter barreiras.”
GABRIEL NOVIS, finalista do Young Guns 2022 e reconhecido por seus trabalhos com grandes marcas como Nike, Adidas, Disney e Louis Vuitton, decidiu fazer o filme movido por um incômodo pessoal. Como surfista e ex-fotógrafo de revistas renomadas do segmento, ele testemunhou a falta de aceitação e o preconceito no meio.