Quando o sonho resiste
Assistindo à vitória de Julia Nicanor no último domingo, lembrei do dia em que sugeri a ela que se dedicasse a uma faculdade, já que o surf parecia não recompensá-la por tanto esforço
Era 2016 quando fiz minhas primeiras contribuições como repórter freelancer especializada em surf para a editora Trip. A pauta, na ocasião, era sobre duas surfistas: Gil Ferreira e Julia Nicanor, à época Julia Santos. Ambas se destacavam das demais pela maneira como abordavam o surf aéreo e progressivo.
Descobri, no entanto, que elas tinham muitas outras particularidades além do surf aéreo. Buscavam apoio financeiro há anos. Talvez fossem as melhores, mas o mercado não parecia enxergar isso. As duas não conheceram o pai e foram criadas pelas mães — a de Gil vendia coco na praia, a de Julia fazia faxina. Ambas viveram grandes (enormes) perrengues na infância.

Encontrei Julia no calçadão das Pitangueiras. Sentamos lado a lado, e ali comecei minha entrevista. Apesar da timidez que notei nela em um primeiro momento, não demorou muito para me sentir bem próxima a ela.
Por trás da timidez, porém, parecia haver algo mais. No olhar da surfista — que era uma fortaleza física — notei certa fragilidade que talvez viesse da insegurança. O dia seguinte era incerto, claro. Como pode uma atleta viver da revenda de equipamentos doados? A revolta tomou conta de mim, e fiz um esforço tremendo pra que ela não percebesse.
A conversa durou pouco mais de uma hora. Naquele dia, sentada no banco do calçadão das Pitangueiras, fiz uma promessa a mim mesma: eu faria de tudo para ajudá-la, mesmo que naquele momento eu também estivesse lutando para sobreviver. Saía de uma época conturbada, marcada por uma retomada após dois longos anos de depressão.
Desde então, acompanho a Julia e fiz o que pude. Abri minha casa, a recebi em Itamambuca para os escassos eventos de surf feminino que aconteciam lá uma vez por ano.
Em certos momentos, questionei se esse era o caminho. Cheguei a sugerir que ela começasse uma faculdade, que buscasse um plano B. Porque o surf, por mais promissor que seja pra alguém com o talento dela, nem sempre devolve o investimento emocional que se coloca nele — principalmente no Brasil e para uma atleta mulher e negra.
Mas, felizmente, eu me enganei, pelo menos em parte.
Julia venceu a etapa da Taça Brasil no Ceará. Um título que a coloca mais próxima da elite do surf brasileiro. Um título que simboliza tudo aquilo em que ela nunca deixou de acreditar. Essa vitória não é apenas um troféu ou um cheque (é também), mas é a prova de que sonho e dedicação são chaves pra uma vida de realizações.
Jamais subestime a determinação de quem sonha grande.
Parabéns, Julia. Parabéns, Marcos, que essa seja apenas uma página de muitas outras escritas por vocês, com suor e coragem!